START
- Ingrid Moraes
- 14 de mar. de 2017
- 3 min de leitura
Sem os piores dias, sem os melhores dias da vida. Escolhi mudar o dia, escolhi acordar com o pé esquerdo e ir dormir com um sorriso direito no rosto, porque o jogo muda. E eu escolhi mudar de jogo. Escolhi não viver de dias, mas de momentos. Juntar meus retalhos do que eu achar importante, relevante, o que decidi contar para o travesseiro. O que valer a pena estar lá na minha cabeça quando eu fechar o tabuleiro. Eu juntei os cacos do espelho quebrado, gostei de me ver como sou. Tangram. Completamente imperfeita e quebrada por dentro. O espelho blindado e perfeitamente limpo não me é útil. Ao contrário, fictício e suspeito. Como brincar de detetive comigo. Meu dia é uma vida e minha vida é um dia. E em uma única vida, o dia é apenas esse. Hoje. Eu vi um palhaço dizer que meu sorriso é lindo e um executivo me colocar um nariz vermelho. Eu dei um bom dia para um cego e ele me acolheu pela mão, eu dei boa noite para um amigo e ele me rejeitou com os olhos. O arder do joelho ralado por tropeçar da arquibancada, a risada pela calça rasgada por cair do skate, a dor do braço quebrado por escorregar no tapete. O medo em assistir uma briga de mãos atadas, o desespero de um assalto em câmera lenta, o desamparo de uma demissão que trincou o espelho. A calma dos céus mais lindos que fotografei com os olhos, a alegria do cantar de passarinhos na árvore, a simplicidade da terra molhada nos pés, a liberdade da chuva me vestindo delicadamente. E o ápice, o sol no fim do dia na mais linda despedida incerta do inédito. Estive sozinha, entrei e sai. Caminhei e corri. Fechei os olhos e os abri. Só. E foi reconfortante não ter ninguém para me questionar se minha estratégia está correta ou inadequada. Foi assustadoramente engraçado ficar com meus pensamentos. Escandalosamente delicioso sujar a boca e não ter ninguém para olhar torto, dizer que meu cadarço está desamarrado ou o zíper da calça aberto. A vida inteira em um dia, um dia inteiro vivido. Vou mudar o tabuleiro amanhã e jogar outro jogo. Mas levo meu peão vermelho, meu cavalo preto, minha carta de poder, minha conquista da Av. Rebouças, meu tanque, meus dados viciados e minha mana. Sem coringas. Sem motherlode. Sem versão para teste. Sem café-com-leite. E quando eu terminar de jogar com meus retalhos. Quando as peças forem recolhidas. Quando as dívidas forem pagas e os pontos contados. Quando o vencedor for anunciado e o perdedor reconhecido. Quando o tabuleiro se fechar e nada mais importar, o que me sobrou? Afinal, eu joguei o jogo ou me joguei no jogo? Eu fui o personagem ou o jogador? Contei com a sorte ou com o raciocínio estratégico? Afinal, o jogo acaba quando termina? Pouco importa ou faz toda a diferença? É sempre minha vez de escolher. Porque não estamos no mesmo jogo, não é o mesmo tabuleiro, não são as mesmas cartas e opções. É esse o momento que enfrento o adversário: eu. Em todas as formas, personagens, objetivos e jogadas. Enfrentando minha raiva em perder, meu orgulho em ganhar. Minha dúvida ao escolher, minha análise ao errar. Minhas jogadas impulsivas, minhas possibilidades de acertar. Ao saber que no fim, eu fui a única responsável pelas consequências. A única responsável pelo meu jogo. E a única a me entender quando eu apenas não quero jogar. Então, não julgue, jogue. Voltaremos para a mesma caixa quando o tabuleiro fechar, sacos pretos ou roupas brancas. Peão ou Rainha. Às de copas ou Quatro de paus. Com o carrinho cheio de filhos ou sem nenhuma conquista no jogo da vida. Peças de valor ou peso pra papel. Flamengo ou Brooklin. Um soldado ou um exército inteiro. Ainda sim corremos o risco de fechar o tabuleiro e nos arrepender por ter perdido a oportunidade de jogar o nosso jogo.
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