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NÃO ABRA OS OLHOS

  • Foto do escritor: Ingrid Moraes
    Ingrid Moraes
  • 28 de ago. de 2017
  • 4 min de leitura

Saltei no meio fio. Atravessei a rua e percebi uma criança ao meu lado que, assim como eu, pisava apenas nas faixas brancas, mas com mais esforço do que eu. Apertei a mochila nas costas, o céu estava azul e as nuvens como pó de giz branco sob ele.

O pipoqueiro estava agitando a panela para desgrudar as pipocas umas das outras, passei a mão sob a grade e é como se eu pudesse voltar à noite que arrastava minha mão sobre ela correndo de patins. Sorri com os olhos para o porteiro, mas seus olhos pareciam ver além de mim, não demonstrou reação nenhuma. "É engraçado voltar aqui e ver as coisas nesse ângulo", ri comigo.

Caminhava em uma reta, sem desvios, sem curvas. As memórias me invadiram, várias cenas rápidas passando em segundos na minha cabeça. Podia ouvir uma risada de criança quando passei pela piscina, redonda, com 15cm de água. No estacionamento, ouvi o barulho de rodinhas da bicicleta girando rápido, uma garotinha jogava a cabeça de um lado a outro fazendo seus cabelos dançarem, ela cantarolava baixinho uma canção que dizia "saber olhar pra dentro, ser cada vez melhor". A canção parou, vi um saco plástico voando no céu à minha frente e pude ouvir um grito vindo do terceiro andar, uma garotinha acenava de lá, vestida com uma enorme blusa branca ensanguentada e um ursinho rosa sendo segurado pelo braço. Ela me deu um sorriso e apontou para uma árvore à minha direita. Fui em direção à quadra de futebol que a árvore estava, me assustei com um coelho branco que saltava à minha frente, pisquei os olhos e ele sumiu.

A mesma garotinha estava sentada no meio fio, tentando respirar, ela me dizia "me ajude a ficar calma", eu não soube o que fazer e ela me abraçou. Seu batimento cardíaco foi desacelerando, ela dizia desesperadamente "eu não quero te atrapalhar, me desculpe, eu só dou trabalho, eu não quero mais te dar trabalho". Eu conseguia sentir as lágrimas dela caindo sob meus ombros. Eu continuei a abraçando forte enquanto ela sumia nos meus braços.

Quando cheguei até a árvore, uma garotinha passava de um lado ao outro dos galhos e gritou lá de cima "tem um quarto sobrando, quer brincar comigo?". Enquanto buscava onde colocar o pé, a garotinha sumiu, olhei em volta e havia escurecido. Sentei na grama encostada na árvore, e a quadra ficou colorida. Foi quando percebi que não estava mais no mesmo lugar. Um garoto disse "vem, se esconde aqui", entendi que aquilo era importante. Me veio uma sensação tão estranhamente boa, e ele disse "eu vou precisar te deixar aqui, você entende?". Olhei para os meus pés e balancei a cabeça concordando.

Quando olhei de volta, eu estava no escuro, tentei encontrar um interruptor na parede. Levantei os braços na parede e uma luz se acendeu. Eu estava em uma escada. Pude ouvir uma porta batendo, me assustei. Olhei entre o corrimão, parecia ser no primeiro andar. Ela chorava e dizia "você é uma idiota, você sabia que isso ia acontecer". Uma garota subia as escadas pagando um sermão para si mesma, "nunca ninguém se importou, por que ele se importaria?". Ela passou por mim e sentou no último degrau abraçando as pernas, ela chorava tão alto que me deixou imóvel. Eu disse "eu estou aqui, você quer conversar?", mas ela deu de ombros e seu choro parecia cada vez mais alto.

A luz apagou. Busquei a porta de emergência e sai em um campo verde, havia cachorros correndo por todos os lados e seus donos conversavam e sorriam apontando para eles. Sentei em um banco que havia no centro do gramado, uma moça segurava uma cadela no colo. Ela pareceu não perceber que eu estava ali, ela cantava baixinho algo que dizia "eu quero esquecer tudo e fugir, só esquecer tudo e fugir". Eu pude sentir o seu medo em sua respiração, ela levantou a cabeça e ficou olhando em minha direção, eu dei um sorriso mas percebi que ela olhava por cima dos meus ombros. Olhei para trás e havia um caminhão de mudanças na pista, um filme passou pela minha cabeça. Quando olhei de volta, ela já estava longe. Fiquei ali sentada alguns segundos, não havia mais cachorros, não havia mais pessoas, não havia mais barulho. Até o sol se despedia de mim, olhei para o relógio e marcava 17:30, dei um sorriso como quem diz "não brinca, tão óbvio assim?". Fechei os olhos e encostei a cabeça no banco de cimento. O frio começou a aumentar e na poça de água em frente aos meus pés pude ver meu rosto refletido. "Olá, moça dos cabelos de cenoura". Eu e você sabemos que isso não valeu um mísero centavo, mas não venderíamos nada disso nem por mil. E talvez, só talvez, quando nenhuma de nós estivermos aqui, talvez alguém queira ler. Talvez alguém deseje ouvir toda a história.

É assim que as coisas acontecem nessa terra, não é, poça de água falante?

Mas não somos daqui, cabelos de cenoura. Nós não somos daqui.


 
 
 

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